Há quem nunca tenha sofrido um abuso sexual, físico ou psicológico, mas, mesmo sem compreender essa realidade, se autoabusa constantemente, porque não consegue largar esse dó que costuma sentir de si mesmo, ou porque supervaloriza a própria pena, o trauma e o passado

Não é algo tão consciente, bem como sua intenção não é precisamente má, mas isso é o que você pensa e não o que realmente é.
Horas se passam e dificilmente você percebe que um sorriso saiu espontaneamente de seu rosto. Seus olhos não brilham, a não ser que estejam lacrimejando. E quando vê uma cena triste na tevê, fatalmente vai remeter-se ao passado imundo que viveu ou foi forçado a vivenciar.
Aquele alguém invadiu a sua privacidade, entrou em sua intimidade, lhe traiu e decepcionou. Você foi avisado que a porta principal de entrada de sua vida estava fechada para a felicidade e o seu direito era apenas o de entrar pelos fundos, sempre se escondendo e se humilhando.
E depois que aquele abuso aconteceu, nada mais houve de bom em sua vida – pelo menos você não consegue reconhecer as belas coisas do dia a dia em nenhum lugar, nem as que estão dentro de si, encabuladas, porque você mesmo as considera inferior. Você se fecha, se exclui, se rebaixa e se joga do patamar que havia construído enquanto sonhava. Agora só vive um pesadelo e está emaranhado nessa teia de dor.
Foi o abuso sofrido na infância, a palavra mal dita pelos pais, a falta de educação grotesca de um amigo, a traição do marido, a decepção com a esposa, a mágoa da má intenção, a falta de respeito.
E nessas lembranças, você se entranha, e se esconde, e então se conserva. Porque, mesmo sem querer ou sem propósito, acredita que neste tormento solitário e senil é mais cômodo viver do que propriamente abandoná-lo.
O sofrimento em si é uma forma de abuso, consideradas, logicamente, as proporções para cada vítima, mas não deixa de ser um abuso.
Há quem nunca tenha sofrido um abuso sexual, físico ou psicológico, mas, mesmo sem compreender esta realidade, se autoabusa constantemente, porque não consegue largar esse dó que costuma sentir de si mesmo, ou porque supervaloriza a própria pena, o trauma e o passado.
E por isso o seu sorriso mais uma vez é amarelo, forçado para ser sociável, quando, na realidade, seu desejo era ser verdadeiro e dizer apenas que não gostaria de compartilhar da mesma gentileza da outra pessoa que lhe importuna. E assim você sai de cena mais uma vez.
Qualquer forma de abuso sofrido ontem ou hoje pode servir para lhe imunizar de diferentes abusos amanhã. Quando a dor vem, o melhor a fazer é encará-la de frente, mesmo que isso soe como mais um clichê de autoajuda. E não só encarar, é abandonar em seguida, para que ela não lhe tranque sem que você perceba e lhe faça passar anos da vida confuso, até tornar o seu sorriso uma palidez eterna.
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